Uma reflexão à luz da parábola do Bom Samaritano

25E eis que se levantou um certo doutor da lei, tentando-o e dizendo: Mestre, que farei para herdar a vida eterna? 26E ele lhe disse: Que está escrito na lei? Como lês? 27E, respondendo ele, disse: Amarás ao Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu entendimento e ao teu próximo como a ti mesmo. 28E disse-lhe: Respondeste bem; faze isso e viverás. 29Ele, porém, querendo justificar-se a si mesmo, disse a Jesus: E quem é o meu próximo? 30E, respondendo Jesus, disse: Descia um homem de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos salteadores, os quais o despojaram e, espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto. 31E, ocasionalmente, descia pelo mesmo caminho certo sacerdote; e, vendo-o, passou de largo. 32E, de igual modo, também um levita, chegando àquele lugar e vendo-o, passou de largo. 33Mas um samaritano que ia de viagem chegou ao pé dele e, vendo-o, moveu-se de íntima compaixão. 34E, aproximando-se, atou-lhe as feridas, aplicando-lhes azeite e vinho; e, pondo-o sobre a sua cavalgadura, levou-o para uma estalagem e cuidou dele; 35E, partindo ao outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele, e tudo o que de mais gastares eu to pagarei, quando voltar. 36Qual, pois, destes três te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores? 37E ele disse: O que usou de misericórdia para com ele. Disse, pois, Jesus: Vai e faze da mesma maneira. (Lucas 10, 25-37)

 

É sempre um desafio falar das parábolas de Jesus. 

Apesar de encabeçarem conceitos morais relativamente enigmáticos aos judeus de 2000 anos atrás, praticamente todo cristão hodierno é capaz de ouvir uma dessas pequenas histórias e compreender com alguma clareza acerca do que efetivamente tratam.

Porém, simples não quer dizer simplório. 

Conceitos morais como aqueles expressos na parábola do Bom Samaritano contém em si mesmos um grau de complexidade que ainda não é acessível à prática humana mais natural, mesmo tendo se passado tanto tempo desde a enunciação dessas singelas palavras.

Examinemos mais detidamente a estrutura do problema proposto: um homem é ferido numa estrada, e sua necessidade é solenemente ignorada por um sacerdote e um levita – figuras que representam a ortodoxia religiosa da época de Jesus. Mas um samaritano atende ao ferido que foi deixado para morrer. O que representa este personagem? Um herético. Alguém não apenas à margem da sociedade judaica daquela época, mas um indivíduo visto com maus olhos por seus hábitos, costumes e tradições. Um dos muitos inimigos antigos do povo de Davi. 

Jesus não apenas trata da necessidade de se acudir a dor alheia, de se dedicar com afinco ao próximo, como também expõe a inutilidade dos preconceitos religiosos, embasados em arcaicos costumes. 

Seu interlocutor não é uma pessoa comum, mas um Doutor da Lei, uma das categorias mais respeitadas do Judaísmo da época, devido ao seu vasto conhecimento sobre as tradições mosaicas e a Torá. E, como se sabia, perder um debate público com um rabino bem conceituado poderia levar ao opróbrio, ao escândalo. 

Ao mostrar que um reles samaritano pudesse ser mais autêntico e correto aos olhos de Jeová que um sacerdote ou um levita, Jesus imprimiu a regra moral enquanto expôs a fragilidade do pensamento religioso vigente, encurralando o sábio na solidão do seu domínio intelectual, usando as duas únicas armas que sua excelsa pacificidade lhe permitiam: seu inabalável bom senso e sua incorruptível bússola moral. 

Numa época em que era comum matar ou aprisionar pessoas por atos ou palavras que fossem considerados ofensivos à legislação religiosa vigente ou à dignidade pessoal de alguém, Jesus confrontou a frágil teologia humana contra a regra moral mais comezinha, forçando carinhosamente seu interlocutor a abdicar do trono em que se arvorava e reconhecer que a prática da caridade e da misericórdia afinal estavam acima das hierarquias e problemas humanos. 

Mestre, que farei para herdar a vida eterna? 

Ao cogitar sobre herdar, nosso fariseu – e ele provavelmente o era, dado que grande parte dos doutores da lei eram fariseus – certamente não pensava em obter essa conquista com esforços de caráter pessoal, mas sim como um direito inalienável, pois uma herança é um patrimônio, um bem passado de pai para filho. E este é um engano que muitas pessoas cometem até hoje, vez que imaginam que o Reino dos Céus é como uma repartição burocrática e elitista, na qual os escolhidos para ocupá-lo assinaram algum contrato, pagaram algum valor monetário ou são possuidores de títulos honoríficos. 

Porém, nós, espíritas, já sabemos que não herdaremos nada que não tenhamos conquistado. E isso é certo. 

Já a vida eterna é descrita por várias religiões até os dias atuais como um estado de existência infinito, contemplativo e repleto de delícias (algumas de caráter bastante questionável), disponível apenas para certos eleitos após a morte. Entretanto, depois de termos dialogado por quase dois séculos com espíritos felizes e luminosos que nos antecederam na vida além-túmulo, hoje compreendemos que a felicidade do cristão sincero é trabalhar pelo bem comum, que céu e inferno coexistem dentro da nossa própria consciência e que a satisfação pessoal de cada um de nós após a passagem do corpo dependerá única e exclusivamente do patrimônio moral que conseguimos amealhar a partir de nossas experiências, nesta grande escola chamada Terra.

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Uma leitura menos técnica e mais focada no tempo presente da parábola do Bom Samaritano nos confronta com outra verdade incômoda: em tempos de pandemia e deprimidos pela morte de amigos e familiares, é preciso que nos perguntemos novamente: quem é o nosso próximo?

Muitos de nós estamos isolados em casa há vários meses. A mensagem instantânea, o breve telefonema ou a videoconferência com familiares distantes não são mais capazes de aplacar a dor da solidão. 

Um clima de insatisfação com a política vigente se consolida a cada dia, e o pessimismo com as instituições governamentais nos torna cada vez mais cínicos, tristes e desinformados. 

As notícias nos jornais são sempre as piores possíveis, e não existe boa nova que não seja sobrescrita no dia seguinte (ou de imediato, no telejornal de outro canal) por uma péssima novidade, levando desespero, desânimo e incredulidade ao coração do crente mais sincero.

 

Mas lembrem-se, amigos, que, se o desespero ou a depressão nos bate à porta da alma, faz-se necessário buscarmos apoiar a outros que sofrem como nós. E se estamos esgotados, que sejamos nós a buscar esse apoio. 

Na impossibilidade de permanecermos ativos nas atividades voluntárias que alegravam nosso espírito e estruturavam nossa resistência espiritual, levemos nossa palavra a amigos e conhecidos que também estão em sofrimento; não raro, mais que nós. 

Quando conectados à Internet, busquemos sensações melhores; nas mídias sociais, trabalhemos com o otimismo, evitando absorver a cultura de massa e valorizando canais e indivíduos que efetivamente têm algo a dizer ou ensinar. 

No reduto do lar, exercitemos nossa arte, nossa voz, nossa escrita, produzindo textos, imagens e gravações que possam levar refrigério e conforto às almas debilitadas pela depressão e pelo pânico. 

Valorizemos também aqueles que têm gastado tempo e saúde nos concedendo serviços essenciais, apoiando-os tanto quanto possível, fazendo doações e dedicando-lhes mesmo um ombro amigo quando necessitarem, em vez de desperdiçar nossa atenção com figuras públicas que nada podem adicionar ao nosso espírito. 

Em tempos de solidão forçada, em que nos isolamos uns dos outros, o próximo está ao alcance de um telefonema, de uma mensagem, de uma postagem nas redes sociais, de uma gorjeta no iFood. 

Façamos nosso trabalho. 

Se ninguém acercar-se de nós, sejamos nós a nos acercarmos dos outros. 

 

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