1. Inspiração divina, palavra humana

A inspiração é uma das formas empregadas pelos habitantes do

mundo invisível para nos transmitirem seus avisos, suas instruções.

Léon Denis

Certa vez, um pensador disse que, se era verdade que Deus criara o homem à sua imagem e semelhança, este se sentiu incomodado e procurou vingar-se enveredando pelo antropomorfismo, concedendo à divindade as virtudes humanas, e também os seus vícios, para atribuir-lhe as vontades imperfeitas da criatura e as suas falhas renitentes.

Desse modo, menos por arrogância ou pretensão que por simploriedade e ignorância, permeados de eventuais interesses inconfessáveis, é tendência quase irresistível ao ser encarnado praticar a redução dos ensinamentos superiores à sua compreensão constrangida pela limitação sensorial e pelo raciocínio embotado na grade carnal. Comete a impune simplificação de conceitos e intenções sublimes, distorce e simplifica o entendimento de verdades inefáveis, reduz a aplicação da lei à estrita conveniência de seus propósitos.

Em consequência, ditames piedosos e instrutivos para a convivência terrena assumem caráter de legislação draconiana, que submete os seus supostos beneficiários à obediência temerosa. Recomendações e conselhos generosos, propugnadores do progresso moral e espiritual, decaem ao nível de proibições limitadoras, para inverter-lhes o efeito desejado, chegando ao anátema extremado. As lições dos grandes vultos da sabedoria eterna sujeitam-se aos contornos apequenados da liberdade diminuída.

A este cenário de entendimento parco, por vezes mal intencionado, acrescem-se os muitos séculos decorridos dos principais eventos orientadores da doutrina cristã e os incontáveis idiomas e diversificados costumes que intensificaram a dificuldade de absorção e cumprimento de ensinos e exemplos relativamente simples e diretos em sua origem, inobstante a sua irrepreensível perfeição, a tal ponto que, até mesmo o mandamento de amor ao próximo, tem gerado interpretações diversificadas, sendo exercitado com displicência, incredulidade ou desprezo.

A intenção dos grandes emissários da alta espiritualidade, sempre benevolente e caridosa, sofre a tradução canhestra da palavra humana, sequenciando atos e comportamentos compatíveis à volúvel justiça terrena, adicionados a rituais religiosos de todo naipe, relegando, por vezes, a coerência e a sensatez a plano secundário, ante a presumida vontade irrecorrível do Pai Maior.

  1. Criador e criatura

Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas.

O livro dos espíritos

O Mestre Divino, embora sendo o maior educador que a humanidade conheceu — e talvez por isso mesmo —, não escapou à interpretação equivocada de sua conduta exemplar, que o atrelou a declarações controvertidas ou contraditórias, no mínimo descontextualizadas, de fato incompatíveis à sua grandeza espiritual: Jesus jamais ordenaria a retirada de um olho ou o corte de uma mão para fugir às tentações materiais; não condenaria um vegetal por respeitar o ciclo de florada e frutificação; não ordenaria a dilapidação de bens materiais, que levaria à subsistência dificultosa.

A mesma prudência deve contemplar o entendimento das parábolas, que se valem de episódios singelos e rotineiros, provavelmente pinçados de situações corriqueiras da época e adaptados à finalidade moralizadora do Grande Professor, de que resultam enredos emblemáticos, como a busca de convidados para o casamento do filho do rei e os trabalhadores da última hora. A frase bíblica, perenizada em Mateus 20.16 e 22.14, sintetiza o ensinamento sublime e seu objetivo: muitos são chamados, mas poucos escolhidos.

É indispensável à criatura recepcionar, no limite de seu discernimento, aquele que reconhece como a fonte de tudo que existe no universo, entidade única, nem espírito nem matéria, detentora de todas as virtudes em grau máximo, inatingível e insuperável ao conjunto da criação, segundo o ensinamento preciso e abrangente de Allan Kardec, em A Gênese.

Assim, dele não se pode esperar nada aquém da perfeição, sob qualquer aspecto, jamais falhará, ainda que a tradução de sua vontade soberana pelo falível raciocínio humano se submeta à distorção praticamente inevitável.

As palavras e os atos de Jesus sempre buscaram esclarecer ao restante das criaturas que o Pai Eterno aguarda o retorno de todas as suas emanações lapidadas pelo aprendizado e pela convicção no bem, muitas vezes arduamente adquirida. A lição é atemporal, e a humanidade terá tempo suficiente para apreendê-la plenamente.

 

  1. Aviso, esclarecimento, oportunidade

Não há espaço algum no universo onde não pulse o amor de Deus.

Portal Momento espírita

As religiões em geral e o Espiritismo em especial afirmam que Deus se comunica com seus filhos por meio da inspiração, servindo-se de seus emissários mais elevados, próximos de sua perfeição, alimentando pensamentos, ideias e iniciativas edificantes, por vezes recebidas como intuição salvadora. Ao Pai infalível, não importa a forma como a sua divina vontade é sentida pelos alvos de seu amor, apenas a sua reação consequente e decidida, no rumo da reforma íntima.

Compete, portanto, entender intensa e extensivamente a palavra retransmitida por Jesus e anotada por Mateus: muitos são chamados, mas poucos escolhidos.

Admitindo-se que o chamado divino proclama o retorno à fonte de toda existência, não poderá cingir-se a poucos ou muitos, valerá para toda a criação, pois o privilégio não é contemplado pela virtude suprema. O termo “muitos” indica que a convocação acontece continuamente, abrangendo a multidão de seres, cada um a seu tempo, segundo o grau de compreensão e moralidade.

A palavra “escolhidos”, por sua vez, parece inferir que haveria uma seleção dentre as súplicas humanas por redenção, com a opção divinamente peremptória e irrecorrível a favor de alguns em detrimento de outros, o que caracterizaria atitude ainda mais incompatível da divindade, que sabidamente concede a todos a plenitude de seu amor.

Tal possibilidade, ao arrepio do esforço e do mérito individuais, encontraria guarida no conceito de graça, recepcionado por importantes vertentes do Cristianismo. Equivaleria, pois, a efetivo poder discricionário do Criador, que exerceria a sua preferência paterna, oferecendo, de fato, a salvação para os seus escolhidos, que manteriam, entretanto, a opção de aceitá-la ou rejeitá-la, na certeira definição evangélica de um favor imerecido.

A vida verdadeira e infindável, absolutamente, não exclui a escolha, lídimo exercício do livre-arbítrio, qualidade maior e irrenunciável do espírito emancipado pelo reerguimento moral, detendo, portanto, a capacidade de definir os rumos de sua evolução.

Na realidade, o chamado universal, à feição de um pai ou mãe terrenos que não deserdam nenhum filho, por mais que lhes desagrade o seu comportamento, corresponde ao aviso misericordioso do Pai Maior, para que o rebento desgarrado reveja a sua posição, retomando o caminho de volta ao abrigo seguro do lar original. Desatendido o aviso, retornará mais intenso, evidenciando agravantes e sofrimentos evitáveis até que se faça ouvir.

Essa repreensão amorosa contempla o esclarecimento bastante ao espírito para que consiga discernir objetivos e consequências para a sua trajetória imortal, enxergando, por si próprio, o futuro que almeja.

A oportunidade de refazimento é abrangente, extensiva e reiterada indefinidamente, para culminar no seu aproveitamento, no tempo demandado pela vontade e perseverança de cada ser.

Dessarte, torna-se possível o entendimento acertado: todos são chamados, alguns acolhem o convite prontamente, outros fá-lo-ão a seu tempo.

Porque Deus não tem escolhidos.

 

  1. Misericórdia divina, comportamento humano

 

A justiça divina chama a todos para a reabilitação

diante das leis de amor e pela divina misericórdia.

Professora Jane Maiolo, escritora espírita – Jales/SP

 

No Espiritismo, diz-se que o conhecimento das verdades espirituais é despertado menos pelo amor que pela dor, grupo que inclui a esmagadora maioria dos estudiosos da doutrina, porque, neste rude mundo, o patamar moral de seus habitantes também é, no mais das vezes, rudimentar. Assim, a convocação suave, suscitada unicamente pelo desejo de elevação e da prática do bem incondicional, não reverbera nas mentes amoucadas por intenções pouco nobres, ancoradas no orgulho, na ambição e no egoísmo.

Quase sempre é preciso que o alerta estrondeie incomodamente, impedindo que se o ignore, e os decibéis indispensáveis a esse efeito são providos pela dor, de natureza vária, que demonstra ao ser o advento de sua transformação, arrancando-o do aconchego conformista a que reduzira, voluntariamente, a sua psicosfera de vida.

Certa feita, alguém disse que, quando se imagina ter resposta para tudo, a vida se encarrega de mudar as perguntas; trata-se de outra forma de se referir à misericórdia divina, sempre pronta a oferecer o degrau para que o filho relapso se digne a abandonar a planície, atraente e rutilante, de sua própria ignorância.

Os chamados são muitos, inumeráveis, para todos, emanados pela bondade do Senhor, onisciente e onipresente, jamais distante da criatura, ainda que ela não o perceba e viceje descrente em meio ao sofrimento indizível.

Cabe encerrar com a frase, sempre oportuna, do excelso missionário Chico Xavier: a vontade de Deus nunca irá levá-lo aonde a graça de Deus não possa protegê-lo.

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